quarta-feira, 23 de abril de 2014

Abril de 2014 - CLARICE LISPECTOR

Encontro 66, 6/5/2014


"Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida." 
Clarice Lispector



Laços de família
Lazos de familia



“No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e escolhera.
Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranquila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.”  

Clarice Lispector, trecho do conto: Amor


"´Mas só tu e eu sabemos que te abandonei porque eras a possibilidade constante do crime que eu nunca tinha cometido. A possibilidade de eu pecar o que, no disfarçado de meus olhos, já era pecado. Então pequei logo para ser logo culpado. E este crime substitui o crime maior que eu não teria coragem de cometer´, pensou o homem cada vez mais lúcido.
´Há tantas formas de ser culpado e de perder-se para sempre e de se trair e de não se enfrentar. Eu escolhi a de ferir um cão´, pensou o homem. ´Porque eu sabia que esse seria um crime menor e que ninguém vai para o Inferno por abandonar um cão que confiou num homem. Porque eu sabia que esse crime não era punível.´” 

Clarice Lispector, Trecho do conto: O crime do professor de matemática


“Mas que sensibilidade!, agora não apenas por causa do quadro de uvas e peras e peixe morto brilhando nas esca­mas. Sua sensibilidade incomodava sem ser dolorosa, como uma unha quebrada. E se quisesse podia permitir-se o luxo de se tornar ainda mais sensível, ainda podia ir mais adian­te: porque era protegida por uma situação, protegida como toda a gente que atingiu uma posição na vida. Como uma pessoa a quem lhe impedem de ter a sua desgraça. Ai que infeliz que sou, minha mãe. Se quisesse podia deitar ainda mais vinho no copo e, protegida pela posição que alcançara na vida, emborrachar-se ainda mais, contanto que não per­desse o brio. E assim, mais emborrachada ainda, percorria os olhos pelo restaurante, e que desprezo pelas pessoas se­cas do restaurante, nenhum homem que fosse homem a va­ler, que fosse triste mesmo. Que desprezo pelas pessoas se­cas do restaurante, enquanto ela estava grossa e pesada, ge­nerosa a mais não poder. E tudo no restaurante tão distante um do outro como se jamais um pudesse falar com o outro. Cada um por si, e lá Deus por toda a gente.”Clarice Lispector, trecho do conto: Devaneio e embriaguez duma rapariga



“Existir é tão completamente fora do comum que se a consciência de existir demorasse mais de alguns segundos, nos enlouqueceríamos. A solução para esse absurdo que se chama  ´eu existo´ é amar um outro ser que, este, nós compreendemos que exista.”
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Clarice Lispector 




Na entrevista com Júlio Lerner,1977. 
O especial traz depoimentos de admiradores de Clarice.



No seguinte link há trechos de uma entrevista em espanhol que Marina Colasanti, Affonso Romano de Sant´Anna e  João Salgueiro lhe fizeram no Museu de Imagem e Som do Rio no ano 1976.

 En el siguiente artículo se incluyen los trechos más relevantes de una entrevista que le hicieron a Clarice en el Museo de Imagen y Sonido, Rio de Janeiro, 1976.

http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/libros/10-4775-2012-08-26.html




“Em Recife onde morei até doze anos de idade, havia muitas vezes nas ruas um aglomerado de pessoas diante das quais alguém discursava ardorosamente sobre a tragédia social. E lembro-me de como eu vibrava e de como eu me prometia que um dia esta seria a minha tarefa: a de defender o direito dos outros.
No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? 

Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima.
É pouco, é muito pouco.” 

Clarice Lispector



http://www.claricelispector.com.br/autobiografia.aspx

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Lembrancinha do encontro:





Poemas de Valter Hugo Mãe, Livro das Maldições.


maldição contra o amor sem corpo

teve a coragem de amar uma mulher com fino cabelo de cristal. à noite, na escuridão da cama, não lhe tocava por amor, e por amor a mulher cuidou do seu cabelo, cada vez mais frondoso e delicado. por isso, passeava o casal orgulhoso de tanta beleza pelas ruas. entravam em casa só mais tarde, quando ninguém sobrava para ver. era também quando se amavam sem se poderem suportar. cada um para seu lugar sem dizer mais nada, com a tensa proximidade da violência. sem filhos, desligavam as luzes e emudeciam. era quando alguns animais irrompiam pelos poros das paredes e lhes fungavam nos pescoços. o cabelo da mulher ondulava em cintilações no escuro, pela moléstia das pequenas cócegas e mordidas.



poema sobre o amor eterno


inventaram um amor eterno. trouxeram-no em braços para o meio das pessoas e ali ficou, à espera que lhes falassem. mas ninguém entendeu a necessidade de sedução. pouco a pouco, as pessoas voltaram a casa convictas de que seria falso alarme, e o amor eterno tombou no chão. não estava desesperado, nada do que é eterno tem pressa, estava só surpreso. um dia, do outro lado da vida, trouxeram um animal de duzentos metros e mil bocas e, por ocupar muito espaço, o amor eterno deslizou para fora da praça. ficou muito discreto, algo sujo. foi como um louco o viu e acreditou nas suas intenções. carregou-o para dentro do seu coração, fugindo no exacto momento em que o animal de duzentos metros e mil bocas se preparava para o devorar.




poema do amor e da tenra idade


havia um lugar muito distante onde as crianças não tinham um braço no meio do peito. eram crianças horríveis apenas com um braço de cada lado, vindo de cada ombro. só muito mais tarde, já adultas, o braço do peito lhes crescia. por isso, nunca se apaixonavam na adolescência, incapazes de agarrar nos corações umas das outras. o governo, quando soube de tal deficiência nos pobres habitantes daquele lugar, incapaz de suscitar o atempado crescimento desse braço tão fundamental, ordenou que se fizesse um pequeno buraco no peito de cada criança, por onde, ainda que sem lhe tocar, pudessem ver o coração umas das outras. foram raros os casos mas, a partir de então, tornou-se possível encontrar seguros amores de adolescente.




poema das árvores e da aprendizagem

tudo o que as àrvores fazem é pensar. ficam generosas à espera de chegar a uma conclusão. e se morrem, não é absoluto que tenham tido resposta. deram sombra, pássaro, fruto e vento, mas podem partir quietas, como quem tomba para dentro de si mesmo, com felicidade pelo que já passou e nenhuma mágoa, só a aceitação sábia do tempo.






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